sábado, 18 de junho de 2011

A POESIA NA MÚSICA DE VIVALDI : Ricardo Mattos e TheGravicembalo2


Enviado por
em 01/02/2011
Le quattro stagioni,from Il cimento dell'armonia e dell'invenzione.primavera estate autunno inverno.
legendary performance of I Musici 1959.

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Da Poesia Na Música de Vivaldi
Ricardo de Mattos

 

Hoje é difícil imaginar a importância religiosa, política e social que a música um dia já teve. Os compositores eram contratados, ou mesmo empregados por governantes, nobres e eclesiásticos como qualquer outra categoria de serviçais. Cite-se logo de imediato Haydn, Haendel, Salieri e Lully. O filme Le Roi Danse mostra muito bem o papel de Jean Baptiste Lully (1.632-1687) na corte de Louis XIV. Nasceu um príncipe? Componha-se uma Missa em Acção de Graças pelo facto. Um duque dará uma grande recepção? Crie seu compositor particular novas peças e ensaie-as com a orquestra à disposição até a data aprazada. Morreu uma rainha? Um Requiem já deverá estar preparado para a ocasião.

Se a produção foi de tal porte, onde as partituras, cujo volume deve ser imenso? Muita coisa já foi gravada e colocada à disposição do público apreciador, mas é incalculável o que resta guardado nos arquivos de palácios, igrejas, mosteiros e universidades. Vez por outra, um nome diferente é apresentado: Benda, Milisvecek, Veracini, Viviani. Ora são grandes compositores com muita obra a ser descoberta, ora são compositores menores dos quais são seleccionadas as obras mais expressivas. Mesmo os considerados maiores não têm divulgada a totalidade de suas obras. Até procurei, mas não encontrei nenhuma gravação da ópera Rodelinda de Haendel, composta em 1.725. Ela existe, ele um dia teve o trabalho de compô-la. Sua "extinção" presente é devida a várias causas, principalmente de mercado, visto o público sempre procurar as mais populares.

O resgate e execução de peças por curiosidade é algo a não se verificar tão cedo. Rousseau foi músico e teórico musical, mas não sabia ter ele composto em 1.752 a ópera Le Devin du Village - O Adivinho da Aldeia - e ouvi-la é algo com o que não conto ainda nesta vida a findar-se.

Repare-se, portanto: a demanda de séculos promovida por chefes eclesiásticos ou de Estado empurrou para o esquecimento compositores como Bach, e Vivaldi. No último dezembro, comentei o Oratório de Natal do primeiro, assombrando-me nas pesquisas com um dado: tal composição pode ter sido executada apenas uma vez em sua vida. Apenas naquele Natal de 1.734. Morto em 1.750, sua obra só veio de novo à luz no século XIX por empenho de Felix Mendelssom (1.809-1.847).

Rastreando o percurso feito por Bach em vida e visitando-se as cidades onde morou, trabalhou e leccionou, os pesquisadores com acesso aos seus manuscritos repararam no grande número de transcrições feitas por ele - principalmente para o órgão - das peças de um compositor italiano até então obscuro: Antonio Vivaldi (1.675- 1.741). Antes do aprofundamento das análises, até da acusação de plágio o músico alemão foi vítima.

Vivaldi é o autor dos quatro famosíssimos concertos conhecidos como As Quatro Estações. Estes concertos foram publicados em 1.725 com mais oito n'um conjunto único conhecido como Opus 8. "Opus" é um termo latino que, acompanhado de um número, indica a ordem de publicação da obra de um compositor. Opus 8, por conseguinte, foi o oitavo grupo de peças de Vivaldi, publicado com o título "Il Cimento dell'Armonia e dell'Invenzione", algo como "Experiência de Harmonia e Invenção". Aqui o termo "Invenção" afasta-se do sentido comum de engenho, imaginação para significar o desenvolvimento contrapontístico de um motivo simples.

As Quatro Estações merecem a fama.
Porém sua apreciação poderia ser muito melhor
se juntamente com as gravações fossem divulgados 
os sonetos que lhe servem de complemento.
Não é preciosismo inútil: trata-se do melhor entendimento e fruição da obra, adicionando-se importante elemento para alcançar as cenas imaginadas por Vivaldi. São quatro sonetos, um para cada concerto. Talvez os ouvintes lessem-nos durante a execução, talvez alguém recitasse-os ao público adequando-os ao desenvolvimento da música. 
O casamento entre poesia e música
é tão perfeito que se reforça a presunção
de autoria em relação a Vivaldi. 
Entusiasmado com essa união, o pintor Jean von Blasenberghe teria preparado quatro telas, infelizmente não localizadas para este texto. Acrescentei outros quadros e ainda que de pintores pertencentes a épocas diversas e adeptos de estilos diferentes, foi possível ater à fidelidade temática.

É muito comum que um CD venha acompanhado de alguns dados sobre o compositor, sobre a obra e algumas notinhas tentando substituir a poesia original ocorrendo aqui um desserviço. As incluídas no meu CD fogem ao espírito autêntico. Os sonetos, em tradução livre:
A Primavera
Chegada é a Primavera e festejando
A saúdam as aves com alegre canto,
E as fontes ao expirar do Zeferino
Correm com doce murmúrio.

Uma tempestade cobre o ar com negro manto
Relâmpagos e trovões são eleitos a anunciá-la;
Logo que ela se cala, as avezinhas
Tornam de novo ao canoro encanto.

Diante disso, sobre o florido e ameno prado,
Ao agradável murmúrio das folhas
Dorme o pastor com o cão fiel ao lado.

Da pastoral Zampónia ao Suon festejante
Dançam ninfas e pastores sob o abrigo amado
Da primavera, cuja aparência é brilhante.



O primeiro movimento relaciona-se com a primeira e a segunda estrofes; o segundo com a terceira e o terceiro com a quarta. O ano no hemisfério norte começa no inverno e a primeira estação completa é a primavera. O Catálogo de Ryom demonstra ter sido este o primeiro concerto da série, mas não houve uma sequência perfeita. Seguindo a ordem da Natureza, a próxima composição deveria ser O Verão, mas na realidade Vivaldi dedicou-se ao Outono. O tema do primeiro movimento, como dito algures retorna na ária "Dell'aura al sussurrar" da ópera "Dorilla in Tempe". O excesso de trabalho implicava em certas repetições, como provam também os Magnificat RV 610 e RV 611, constrangedoramente semelhantes. Mero registro, mais para minha própria lembrança: RV significa Ryom Verzeichnis - O Catálogo de Ryom. Peter Ryom foi um erudito dinamarquês, autor do principal catálogo das obras do Padre Ruivo.
O Verão
Sob a dura estação, pelo Sol incendiada,
Lânguidos homem e rebanho, arde o Pino;
Liberta o cuco a voz firme e intensa,
Canta a corruíra e o pintassilgo.

O Zéfiro doce expira, mas uma disputa
É improvisada por Borea com seus vizinhos;
E lamenta o pastor, porque suspeita,
Teme feroz borrasca: é seu destino [enfrentá-la].

Toma dos membros lassos o repouso
O temor dos relâmpagos e os feros trovões;
E de repente inicia-se o tumulto furioso!

Ah! No mais o seu temor foi verdadeiro:
Troa e fulmina o céu, e grandioso [o vendaval]
Ora quebra as espigas, ora desperdiça os grãos [de trigo].


De novo o primeiro movimento relaciona-se com as duas primeiras estrofes; o segundo com a terceira e o terceiro com a quarta. Lido o soneto, impossível não ouvir cantar o cuco do terceiro verso, nem deixar de lado, no segundo movimento, os avisos da tempestade que desabará no terceiro (o meu favorito). O pintassilgo - gardellino - foi pássaro dos afectos do compositor, visto merecer dele um concerto específico, o de número três em Ré Maior, RV 428, para flauta e cordas. Rameau (1.683/1.764) também busca imitar o canto das aves em peças como Le Rappel des Oiseaux e La Poule. Podemos citar ainda o capriccio Cucu de Kerll (1.642/1.703), o interlúdio do quarto acto da ópera Lo Schiavo de António Carlos Gomes e a cuminância em Oliver Messiaen no oratório A Transfiguração com vários cantos de aves executados pelos instrumentos nas várias partes, sobretudo na de número IX.
O Outono
Celebra o aldeão com danças e cantos
O grande prazer de uma feliz colheita;
Mas um tanto aceso pelo licor de Baco
Encerra com o sono estes divertimentos.

Faz a todos interromper danças e cantos,
O clima temperado é aprazível;
E a estação convida a uns e outros
Ao gozar de um dulcíssimo sono.

O caçador, na nova manhã, à caça,
Com trompas, espingardas e cães, irrompe;
Foge a besta, mas seguem-lhe o rastro.

Já exausta e apavorada com o grande rumor,
Por tiros e mordidas ferida, ameaça
Uma frágil fuga, mas cai e morre oprimida!


 

O primeiro movimento liga-se à primeira estrofe, o segundo à segunda, e o terceiro às duas últimas. Vivaldi valeu-se apenas de cordas tangidas e percutidas. Haydn compôs um oratório também dedicado às estações do ano e também na parte dedicada ao outono descreve uma cena de caça. Ambos, Vivaldi com cordas e Haydn com as trompas, retractam muito bem o latido dos cães na perseguição da presa.
O Inverno
Agitado tremor traz a neve argêntea;
Ao rigoroso expirar do severo vento
Corre-se batendo os pés a todo momento
Bate-se os dentes pelo excessivo frio.

Ficar ao fogo quieto e contente
Enquanto fora a chuva a tudo banha;
Caminhar sobre o gelo com passo lento
Pelo temor de cair neste intento.

Girar forte e escorregar e cair à terra;
De novo ir sobre o gelo e correr com vigor
Sem que ele se rompa ou quebre.

Sentir ao sair pela ferrada porta,
Siroco, Borea e todos os ventos em guerra;
Que este é o Inverno, mas tal, que [só] alegria porta.



O primeiro movimento une-se à primeira estrofe. O segundo, de curta duração, prende-se apenas aos dois primeiros versos da segunda quadra. Os demais versos estão vinculados ao terceiro, desenvolvendo-se n'um crescendo cuja interpretação aceita algum optimismo.
Taubaté, 6/2/2003
 Fonte:
Digestivo Cultural
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=925&titulo=Da_Poesia_Na_Musica_de_Vivaldi

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