segunda-feira, 1 de agosto de 2011

REFLEXOES : A ORIGEM DA OBRA DE ARTE, DE HEIDEGGER

   
      Hölderlin é poeta de predileção de Heidegger, como o fora de Nietzsche, seu primeiro leitor. O silêncio dos místicos, de la música callada de San Juan de la Cruz, encontra-se certamente na obra desse poeta tão desconhecido de seus contemporâneos. Contemporâneos esses que permaneceram surdos para a língua de Hölderlin, como se essa sua língua tivesse perdido a capacidade comunicativa: 
"Somos um sinal, sem interpretação/
Somos sem dor e perdemos quase/
A fala, no estrangeiro". 
Talvez aqui os termos da filosofia venha traduzir essa situação humana descrita nas palavras do poeta. A filosofia de Heidegger revela essa situação humana: lançado no mundo, perdido no anonimato da vida cotidiana e banal, sacudido pela angústia, etc. Mas se realmente é assim, se a filosofia de Heidegger traduz a intenção do poeta, quem traduzirá o pensamento filosófico de Heidegger? Reconhecemos a dificuldade nas palavras de Carpeaux:
"A língua filosófica de Heidegger 
é dificilmente compreensível,
certamente intraduzível." 
[2]

            A conferência da qual nos aproximamos, A Origem da Obra de Arte, sucede, cronologicamente, a minha leitura de O nascimento da tragédia, obra que se constitui como centro gravitacional do trabalho que realizei no mestrado. É nesse sentido que, após ter compreendido em Hegel o sentido histórico da manifestação do espírito, lemos a afirmação de Nietzsche em seu Livro do filósofo: "a civilização provém unicamente do significado de uma arte ou de uma obra de arte.". Heidegger, em sua conferência mencionada acima, chega à compreensão de que a arte é, em sua essência, origem, ou seja, uma forma extraordinária da verdade se realizar e acontecer.

            Todo o percurso sugerido pelo texto de Heidegger e traçado aqui nas suas linhas gerais pela minha leitura de sua obra, que é a primeira leitura (talvez até mesmo no sentido de começo, no sentido de que de alguma forma contém, ainda que de maneira implícita e oculta, os problemas que serão examinados nas minhas posteriores leituras das teses de Pareyson, de Gadamer, de Vattimo e Barthes), todo esse percurso pretende compreender a tese de heidegger:  a verdade acontece na arte fazendo-se obra.

            Daí segue-se os dois traços essenciais do ser-obra da obra. A obra, ao contrário do instrumento, promove o aparecimento da Terra, enquanto o utensílio faz desaparecer a matéria na sua utilidade. O coro de que é feito o sapato deve desaparecer na utilidade do ser-instrumento, ao passo que a obra de arte faz aparecer aquilo de que é feita ao promover uma abertura que, além de apresentar, nesse sentido, a Terra, revela um mundo: o bronze recolhe-se em si mesmo na estátua e por meio da abertura que a obra promove ao revelar esse mundo (a história e o culto do deus feito estátua), o bronze mostra toda a sua plasticidade. 
  
Girassóis de Vincent van Gogh
O amarelo, de igual modo, ao invés de desaparecer na obra, ganha toda a sua dignidade nos girassóis de Van Gogh: a obra tem essa capacidade de revelar aquela matéria, de trazê-la à contemplação na sua obscuridade original. É nesse sentido que Heidegger diz que
"A obra tem o poder 
de fazer a Terra tornar-se Terra."

            Aqui estão, portanto, os dois traços essenciais do ser-obra da obra:

    A apresentação de um mundo.
    A revelação da Terra.


Heidegger vai procurar, então, a unidade desse par conflituoso, Terra/mundo, ao refletir  sobre a obra enquanto esta repousa sobre si mesma. A verdade vai acontecer justamente no interior do combate entre mundo e Terra. Verdade é aqui des-ocultação, a-létheia, e não enquanto adaequatio entre o conhecimento e a coisa.

Quando nos aproximamos do quadro de Van Gogh, o quadro Par de sapatos descrito por Heidegger, não vemos ali apenas uma disposição e sobreposição de cores nem simplesmente a reprodução mimética de algo real, mas vemos a apresentação do mundo do trabalhador, a fadiga do trabalho, a lama preta, a terra adubada, etc, etc. Vemos tudo isso no quadro e somos conduzidos pelo ser-do-instrumento ou utensílio (o par de sapatos) que a obra revela. No caso do templo grego descrito por Heidegger, somos conduzidos à divindade que é abrigada pela arquitetura. Ora, é justamente aqui que se encontra o combate: um mundo se abre na medida em que o quadro (cores) e o templo (pedra) se erigem e se apresentam (desvelam-se).

É importante notar que o mundo que é aberto pela obra não está no espaço, mas circunscreve o espaço. É justamente isso que nos diz G. Vattimo:

A obra de arte não pode se situar no mundo,
mas ela própria abre um mundo porque representa 
uma espécie de "projecto" sobre a totalidade do ente e,
neste sentido, é novidade radical.
Por isso, pode definir-se como 
"um pôr em obra da verdade".
[3]

Se, por um lado, o mundo é aberto pela obra, por outro, a Terra permanecerá na obra como permanente reserva, apresentando-se, assim, como aquilo que se retrai e se fecha. O combate entre a Terra e o mundo é a "interdependência das partes combatentes", é isso que Heidegger chama de traço (der Riss). Terra e mundo possuem na origem uma afinidade que revela a sua interdependência, e é nesse traço que a verdade se manifesta na obra.

Novamente a distinção entre o ser-obra da obra e o ser-fabricado do instrumento nos ajudará a compreender essa noção de combate: o par matéria-forma descreve o movimento que ocorre no instrumento, ou seja, a matéria deve desaparecer no uso que é a sua forma. É por esse motivo que não há desvelamento do ente, uma vez que a matéria não aparece. No  ser-fabricado do instrumento o ente permanece oculto na sua utilidade, não conferindo ao instrumento, assim, a autonomia que será conferida à obra de arte. Nessa última, o combate entre Terra e mundo, enquanto traço, ou seja, enquanto abertura, deve manifestar a Terra, trazê-la à tona em seu fechar-se sobre si mesma. Dessa forma, temos:

    A matéria desaparece na utilidade do instrumento.
    A Terra aparece na obra.

Como a Terra aparece na obra? No seu combate com o mundo. Esse combate permite a abertura na qual a verdade vai se projetar. A essência da arte é a verdade posta na obra. Mas, antes de avançar e introduzir o acontecimento da verdade como expressão poética ou como Poesia (Dichtung), gostaríamos de registrar aqui uma questão ainda não explorada: quando a obra de arte é retirada de seu espaço existencial, ela fica destituída de seu mundo próprio. Mesmo que certas obras não sejam retiradas, como um templo ou uma catedral, o mundo das obras vem à baixo. Se é assim, as obras são o que foram no momento de seu criação?
Quando encontramos as obras nas exposições, não encontramos mais o mundo a que a obra pertencia. Perdemos o mundo, mas não perdemos as obras. Elas detêm uma historicidade que tentamos recuperar por meio da experiência histórica que elas assinalam, responderia Heidegger. Mas será mesmo assim?

Lembremos aqui a célebre conferência de Nietzsche, "O drama musical grego", ministrada em 18 de janeiro de 1870, na universidade da Basiléia, Suíça. Nessa sua conferência, Nietzsche nos adverte para o fato de que somos incompetentes perante uma peça da tragédia antiga, precisamente pelo fato de que não compreendemos os dramas antigos na sua totalidade. 
De Aristóteles a Jacob Burckhardt, admite-se que o teatro grego surgiu do coro, das festividades que entoavam cantos de louvor ao deus Dionísio, admite-se, portanto, que no seu nascimento, a tragédia era apenas coro, ou seja, uma festividade musical, a partir da qual se desenvolveu todo o teatro dramático.
A tese de Niezsche 
é que o aspecto essencial da tragédia grega
reside justamente no seu caráter musical. 
Contudo, esse caráter se perdeu para sempre: não mais compreendemos a música dos gregos, a sua adequação entre a palavra, os versos do poeta, e a musicalidade contida nesses versos. Ao contrário, nos aproximamos de Ésquilo, de Sófocles e de Euripedes, como se esses fossem poetas de texto. Bastou Nietzsche aproximar as peças desses dramaturgos aos coros de Tanhöuser, para percebermos que quando retiramos da biblioteca um volume desses autores trágicos, estamos retirando apenas o libreto de um drama musical perdido. 
É apenas em parte que nos aproximamos da obra dramática dos gregos, justamente pelo fato dessa obra não mais apresentar o seu mundo nem seguer revelar inteiramente a sua Terra, uma vez que o som, a musicalidade da palavra, foi destruído para sempre. É assim que a obra de arte dramática permanece envolta pela mistério e pelo silêncio da mudez do herói.

Mas retornemos a Heidegger.

A essência da arte é por-se em obra da verdade.
A verdade aqui não é apenas desocultação do ente, mas também é o seu ocultamento, pois Heidegger afirma que a verdade é a não-verdade, uma vez que é ao mesmo tempo luz e obscuridade, é desvelamento e também reserva, ou seja, aquilo que está fechado em si mesmo, a própria physis.

A verdade, que é luz e obscuridade, desvelamento e ocultação do ente, só acontece quando é expressa poeticamente. Eis o desfecho da tese de Heidegger, que diz: "Toda arte é como um deixar acontecer o advento da verdade do ente enquanto tal e, por isso mesmo, é em essência Poesia." Poesia quer aqui dizer toda expressão do ser, Heidegger usa o termo germânico Dichtung nesse sentido, reservando o termo de origem latina, Poesie, para poesia tal como a entendemos habitualmente. Ora, é por meio da Poesia (Dichtung) que se instala o combate entre mundo e Terra. E, nesse sentido, Poesia é fundação da verdade. Fundar se entende, aqui, em dois sentidos:

    Fundar enquanto fundamento;
    Fundar enquanto começo


Heidegger formulará a tese, que certamente soaria suavemente aos ouvidos de Hegel, de que o começo já contém o final, ainda que de forma oculta. E vai dizer que sempre que a arte começa, a História começa ou se recomeça. Assim, a arte é, em sua essência, origem, ou seja, uma forma extraordinária de a verdade se realizar, tornar-se histórica. 

 
Alexandre H. Reis
Belo Horizonte, 15 de fevereiro de 2007
Picasso



A arte é um enigma. 

Nela se revela e esconde a verdade daquilo que é. Heidegger pretende mostrar-nos como, através da obra, poderemos aperceber-nos do outro lado das coisas e como deveremos utilizar o que vemos como ponto de partida para uma reflexão sobre o sentido último da arte.

Fonte:
ArteBlog
http://alexandrehreis.arteblog.com.br/2509/Reflexoes-sobre-A-origem-da-obra-de-arte-de-Martin/

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