sábado, 1 de outubro de 2011

MENTE SIMPLES E COMPLEXAS - Affonso Romano Sant'anna


Mentes simples e complexas
    Affonso Romano de Sant'anna
 
Essa guerra no Afeganistão está servindo para aclarar que vivemos o embate entre mentes simples e mentes complexas.

A mente simples é retilínea, plana.

A mente complexa é curva, elíptica.

A mente simples acredita que somando dois com dois vai chegar ao quatro.

A mente complexa sabe que somando dois com dois pode chegar a vários resultados, até mesmo, eventualmente, ao quatro.

A mente simples afirma que a linha reta é a menor distância entre dois pontos.

A mente complexa sabe que o universo é curvo e que, portanto, a curva pode também ser a menor distância entre dois pontos.

A mente simples acredita que o que não é branco é preto.

A mente complexa sabe que existe um espectro de cores e é com essa palheta que se chega ao arco-íris.

A mente simples diz furiosa: olho por olho, dente por dente.

A mente complexa pondera com Gandhi, que dizendo olho por olho acabaremos todos cegos e desdentados.

Esta guerra, portanto, tem seu lado pedagógico para quem quiser aprender alguma coisa.

Lembram-se de quando dividíamos o mundo em esquerda e direita?

Era um topológico equívoco. Só porque durante a Revolução Francesa, na Assembléia Nacional, os que queriam mudanças sentavam-se à esquerda e os que queriam conservar as coisas estavam à direita, passamos todos a pensar topicamente.

Mas logo, logo o sangue que escorria dos cadafalsos nos mostraram que ele fluía da direita, fluía da esquerda, fluía do centro.

Hitler não era de direita nem Stalin de esquerda.

Hitler e Stalin eram mentes perversamente simples.

Isto que estamos assistindo em torno do Afeganistão não é um conflito entre o mundo islâmico e o mundo cristão.

É um conflito entre a mente simples e a mente complexa.

A mente simples não vê matizes.

É o bem contra o mal, o certo contra o errado, o Ocidente versus Oriente.

Por isto é possível detectar entre os ocidentais os que têm mentes simples e entre os orientais os que têm mentes complexas.

Por isto é possível, até mesmo entre aqueles que dizem que estão à esquerda e à direita, perceber os que têm mentes simples e os que têm mentes complexas.

Vejo uma série de coisas expressas por escritores nesses dias. Espera-se que o artista e o intelectual estejam habilitados a lidar com o simples e o complexo. Nem sempre. Se há intelectuais que estão tentando ver as nuances do conflito, há aqueles como Oriana Fallaci e Salman Rushdie que ostentam uma retilínea reação verbal.

O terrorista tem uma mente terrivelmente simples.

O militarista, não necessariamente o militar, tem uma mente armadamente simples.

O pacifista, até o pacifista, pode ter uma mente desarmadamente simples.

A arte não é uma coisa simples, embora alguns a simplifiquem em receitas, objetos de consumo e marketing.

Bruneleschi e Alberti, que descobriram a perspectiva no Renascimento, não tinham uma mente simples. Goya não tinha uma mente simples. Clarice não tinha uma mente simples. Nem Guimarães Rosa. Bach era simplesmente complexo.

A mente complexa é a que está sempre aberta para novas dimensões. Newton percebeu dimensões novas no universo. Einstein agregou a quarta dimensão. E agora Stephen Hawking nos anuncia que há pelo menos 21 dimensões ou realidades diferentes.

Olhemos a biologia: o ovo não é quadrado. O coração não é retangular. O DNA são espirais que se procuram a si mesmas num interminável balé de curvas.

Olhemos as galáxias. E os ventos. E os vulcões. E as tempestades. Não são simples, não marcham em linha reta.

O amor, ah! o amor, não é, nunca foi uma coisa simples.


 



O Pensamento Abstrato
Dr. Jorge Martins de Oliveira e Dr. Júlio Rocha do Amaral
 
Conceituar alguma coisa é um indispensável primeiro passo para entende-la. Assim, faz-se mister que a gente se conscientize de que a complexidade do assunto “pensamento abstrato” já começa pela própria dificuldade em definir o que é “pensamento” e o que é “abstrato”.
Iniciemos tentando conceituar “pensamento”.
 
Na lingua portuguesa, consultando o Dicionário do Aurélio e deixando de lado diversas definições lá existentes, que não esclarecem absolutamente nada, como: “é o ato ou efeito de pensar” ou “é a faculdade de pensar logicamente”, conceituações que nos deixam rodando em círculo, conseguimos encontrar duas que nos parecem um pouco mais cabíveis: “é um processo mental que se concentra nas idéias” e “é o poder de formular conceitos”.
 
Buscando na lingua inglesa, através do The Oxford Desk Dictionary and Thesaurus, voltamos a girar em torno de um mesmo ponto, frente à definições como: “é o processo ou poder de pensar” ou, pior ainda, “é o que alguém está pensando”, até que encontramos um conceito mais aceitável: “é a faculdade da razão”.
 
Porém, definitivamente, as conceituações dos filólogos de lá e de cá, não satisfazem às exigências de filósofos, psicólogos e neurocientistas.
 
Mas, de que forma estes conceituam “pensamento”?
Para Jung o “pensamento é uma função psicológica racional, que estabelece relações de ordem comportamental entre conteúdos representativos, através da utilização de categorias como ‘verdadeiro’ ou ‘falso, ou como ‘certo’ ou ‘errado’.”
 
Para Jolivet

“pensamento é a capacidade 
que tem o ser humano de conhecer em que consistem 
as coisas e as relações que elas têm entre si.”
 
Porque admitimos que outras espécies também pensam, temos um conceito que, conquanto, parecido com o de Jolivet é, a nosso ver, menos restritivo e mais adequado. Assim, para nós, “pensamento é a capacidade que tem o ser de, através de três operações mentais distintas: ‘a formação de ideias’, ‘o juízo sobre as relações de conveniência  entre essas ideias’ e ‘o raciocínio, que estabelece relações entre os juízos’, compreender o significado das coisas concretas e das abstrações, bem como das relações que elas guardam entre si.”
 
E quanto ao conceito de “abstrato”?
Voltemos aos filólogos:
Na lingua portuguesa, novamente de acordo com o Dicionário do Aurélio, 

“ ‘abstrato’ é o que expressa uma qualidade
ou característica separada do objeto 
a que pertence ou a que está ligada.”
 
Na lingua inglesa, de novo recorrendo ao The Oxford Desk Dictionary and Thesaurus, temos conceitos mais simples, como este:

“abstrato é o que existe no pensamento 
ou na teoria e não na matéria ou na prática.”
 
Consultando outras fontes, científicas e filosóficas, obtivemos conceituações bem mais lúcidas, as quais, conquanto aparentando, à primeira vista, um certo grau de complexidade, nos permitiram, a partir de palavras relacionadas, como ‘abstração’ e ‘idéia, definir e compreender, mais claramente, o significado de ‘abstrato’.
 
Assim, temos que a ‘abstração’ é um conceito no qual não se leva em conta um valor específico determinado e sim qualquer entre todos os valores possíveis daquilo com que estamos lidando ou ao que estamos nos referindo. Por exemplo, em álgebra, quando dizemos que x é uma variável, desconsideramos o seu valor atual, mas consideramos todos os possíveis valores de x como sendo números, os quais não são objetos físicos e sim objetos linguísticos, formados pela abstração durante o ato de contar.
 
Daí ser talvez a matemática o exemplo ideal do ‘abstracionismo’, uma vez que, como regra, não estuda o mundo real, e sim modelos, que são abstrações do mundo real. Exemplificando: ‘três’ é uma idéia abstrata e não uma coisa concreta do mundo real. Mas ‘três’ é uma abstração muito útil, porque nos permite ter certeza de quanto ‘três’ representa e que, adicionando-se mais ‘um’, sempre teremos ‘quatro’, independentemente de estarmos nos referindo à pessoas, casas, bananas, ou a qualquer outra coisa.
 
Existem outras considerações interessantes e até mesmo contraditórias sobre o tema em questão. Vejamos:
 
Para o filósofo George Berkeley, idéias abstratas são não entidades, ou seja, não constituem idéias que na realidade temos e sim descrições incoerentes de ideías que imaginamos ter. Assim, para ele, as idéias não possuem existência própria, necessitando, sempre, da presença de alguém que as perceba. Uma opinião oposta aos clássicos pensamentos de Platão, para quem as idéias (abstratas ou não) existem de fato, independentemente de haver ou não uma mente humana para percebê-las, uma vez  que se encontram fora de nós, no universo, concebidas por um Ser Superior.
 
Allan Randall, ao concordar, parcialmente, com o filósofo grego, diz que, uma vez que a idéia abstrata possui uma existência própria, devemos imaginá-la como uma idéia de alguma coisa específica. E explica: se, por exemplo, “abstraímos”, ou retiramos, uma maçã do mundo real em que ela se situa, passamos a ficar, apenas, com uma idéia muito particular- a da palavra ‘maçã’. A idéia, em si, embora obtida através de uma abstração, não é inerentemente abstrata. Trata-se, na verdade, de uma idéia particular de algo concreto. Neste caso, uma espécie de imagem mental de uma maçã com cor, forma e tamanho definidos.
 
A idéia abstrata, que alcançou seu grau maior de desenvolvimento em nossa espécie, tornou-se a fonte da criatividade. Sem esta, a raça humana teria sido privada de uma das mais belas expressões que vida pode prover:  a arte. Como, por definição, o 'abstracto' não tem massa, forma, tamanho e cor, quase todas as obras de arte são, definitivamente, concretas. Tomemos como exemplo uma pintura original, não uma cópia, é claro. Ela foi o resultado de uma concepção abstrata inicial da mente do artista, da qual ele construiu uma certa imagem e a pintou. Assim, o trabalho dele ficou concreto, porque tem massa, cor e dimensões.
 
Por outro lado, a música de uma canção, outra admirável criação artística, é, também,  privada de cor, massa e dimensões. Então, por definição, seria uma abstração. Porém, a música é capturada por uma de nossas percepções sensoriais: a audição. Então, segundo nosso ponto de vista, a música não representa uma abstração "pura”. Assim, nós a consideramos uma semi-abstração ou abstração parcial, enquanto reservando o conceito de abstração " pura " ou absoluta para aquelas que, além de serem privadas de cor, massa e dimensões, também não são percebidas pelos órgãos sensoriais.  Elas são apenas  “sentidas " pela mente.
 
Como exemplos de abstração absoluta nós temos sentimentos como ciúme, paixão ou ira, amor ou ódio, felicidade ou tristeza, todos eles profundamente inseridos dentro dos neurônios do nosso sistema límbico ou, como diria John Eccles, nas profundidades de nossas almas...
Mais tarde, citaremos outros exemplos de abstração absoluta.
 
São também importantes e significativas, para a compreensão do processo do pensamento em geral e do abstrato particular, as conceituações apresentadas por James D. Weinland em seu livro How to Think Straight. Para este autor

“o pensamento é uma atividade mental, 
de natureza ensaio e erro, que precede a ação física.
Ocorre quando o próximo passo a ser tomado é desconhecido, 
porque alguma dificuldade interfere com a ação. 
Nestes casos, ensaios imaginários 
indicam um caminho para uma solução, 
evitando assim respostas inadequadas.”
 
Esta definição faz-nos lembrar, imediatamente,uma outra do grande neurofisiologista Aleksandr Romanovich Luria, segundo a qual “o pensamento surge somente quando o sujeito é confrontado por uma situação para a qual não tenha uma solução previamente preparada, seja ela inata ou habitual.”
 
Na concepção defendida por Weinland, o pensamento é um ato complexo, no qual podemos isolar os perceptos (isto é, as impressões de um objeto obtidas pelos nossos sentidos), os conceitos e as generalizações, relacionados entre si pelos processos de indução e dedução, sujeitos à ação de processos subordinados, como a classificação e a formação de hipóteses.
 
Analisando as definições de Weinland em relação aos diferentes elementos constitutivos do pensamento, concluímos que apenas os perceptos têm um caráter concreto, individual, uma vez que se referem a informações captadas pelos diferentes órgãos sensoriais e à sua análise pelos centros corticais correspondentes. O autor ressalta que, embora constituam unidades fundamentais do pensamento, os perceptos 

“não são as experiências mentais 
mais elementares dos seres humanos”,
uma vez que são 
“um composto consistindo de sensação e memória”.
 
Na elaboração dos conceitos (ou idéias) predomina o não concreto, o grupal , pois os mesmos são formados a partir de uma série de vários exemplares individuais de objetos e seres, dos quais eliminamos as diferenças e conservamos as qualidades comuns através da abstração.
Ainda segundo Weinland  os conceitos podem ser classificados de alto ou baixo nível. “Os conceitos de baixo nível, baseados em perceptos verdadeiros de coisas individuais, resultam diretamente do contato pessoal com essas coisas e ajudam a formar nossa experiência prática”.

Os conceitos de alto nível, ao contrário, “são menos dependentes da experiência de uma única pessoa, derivando, em grande parte da educação e, portanto, da cultura do  mundo civilizado”. Ou seja, (acrescentamos nós), do universo em que ela está inserida.
Os conceitos são relacionados entre si pela generalização, atividade abstrata que identifica similaridade entre os mesmos.
 
A importância da abstração na formação do pensamento já era ressaltada há séculos por autores como Condillac (apud Cuvillier), o qual, já em 1798, afirmava que o processo abstrato tinha início já na percepção, pois, “com efeito, nossos sentidos decompõem cada objeto”
Laromiguiere (apud Cuvillier), nesta mesma época e seguindo uma linha similar, dizia ser 

“o nosso corpo, uma máquina de abstrações”

A abstração pode, portanto, ser entendida como uma análise redutora e simplificadora do complexo ‘mundo senso – perceptivo’ em que vivemos, fundamentando o pensamento que nos permite tomar as decisões adequadas, visando garantir nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie.
 
Substratos Neurofisiológicos do Pensamento Abstrato
São conhecimentos importantes para a compreensão dos substratos neurofisiológicos do pensamento abstrato, os conceitos de unidades funcionais do cérebro, propostos pelo neuropsicólogo russo Luria, Segundo este autor, as diversas estruturas que compõe o cérebro podem ser consideradas como partes constitutivas de três unidades funcionais principais:
 
1. Uma unidade responsável pela regulação do estado da atividade cortical e do nível de vigilância, formada pela substância reticular e outras estruturas existentes no tronco cerebral e no diencéfalo e pelas regiões mediais do córtex;
 
2. Uma unidade para a recepção, análise e armazenamento de informações – constituídas por regiões laterais do neocortex situadas na superfície convexa dos hemisférios cerebrais, compreendendo as regiões occipital (visão), temporal (audição) e parietal (sensibilidade geral);
 
3. Uma unidade para programação, regulação e verificação da atividade – formada por estruturas localizadas na região anterior dos hemisférios cerebrais, à frente da circunvolução para-central.
O pensamento, assinala Luria, depende da ação conjunta destas três unidades funcionais mas, as duas últimas parecem ter maior importância para o  pensamento abstrato.
A segunda unidade funcional, conforme o já exposto, é formada pelas regiões occipital, temporal e parietal. Distinguem-se nestas regiões três áreas anatômica e funcionalmente distintas:
 
a) As áreas primárias ou de projeção – formadas, principalmente, por neurônios da camada aferente IV, muitos dos quais apresentando alta especificidade modal; são eles que recebem fibras aferentes provenientes dos órgãos dos sentidos e funcionam como analisadores das informações sensoriais específicas.
 
b) As secundárias ou gnósticas – intimamente relacionadas com as primeiras e constituídas, principalmente, pelos neurônios das camadas celulares II e III, dotados de menor especificidade modal. A presença de muitos neurônios de axônios curtos permite que a excitação ‘entrante’ seja combinada em padrões funcionais, realizando, assim, uma função sintética.
 
c) As terciárias (ou de superposição dos terminais corticais de vários analisadores), compostas quase inteiramente por neurônios das camadas associativas II e III. Situam-se entre as regiões corticais occipital, temporal e pós-central, formando, em sua maior parte, a região parietal inferior que, no ser humano, adquire um máximo desenvolvimento.
 
Essas estruturas terciárias estão situadas nas clássicas áreas de Brodmann: 5, 7, 39 e 40 (na região parietal), 21 (na região temporal) e 37 e 39 (na região têmporo-occipital).
As referidas áreas encarregam-se de integrar as excitações provenientes de diversos analisadores. Segundo Luria seu principal papel é o de promover a organização espacial dos impulsos aferentes vindos de diferentes regiões e o de converter “os estímulos sucessivos em grupos simultaneamente processados, único mecanismo possível para explicar o caráter sintético da percepção, que Sechenov originalmente discutiu há muitos anos”.
Ainda segundo Luria, estas áreas

“desempenham um papel essencial
na conversão da percepção concreta
em pensamento abstrato”.
 
As abstrações, formadas na segunda unidade funcional, são utilizadas pela terceira unidade para as programação das atividades do ser. Especialmente importantes, nessa terceira unidade, são as áreas préfrontais, formadas por neurônios granulares, que mantém conexões de dupla via, não só com o diencéfalo e o tronco cerebral mas também, praticamente, com todas as demais áreas do córtex. As áreas préfrontais, que atingem no homem o seu máximo desenvolvimento, desempenham papel fundamental na formação de intenções e programas, bem como na regulação e verificação dos comportamentos humanos mais complexos.
 
Lesões nas áreas terciárias da segunda unidade funcional provocam diversas alterações neuropsicológicas, dentre as quais destacam-se a incapacidade de captar o sentido global de uma construção verbal, embora mantenha-se preservado o entendimento de palavras individuais. Os pacientes continuam capazes de entender comunicações de acontecimentos (por exemplo, papai e mamãe foram ao cinema), porém não mais captam comunicações de relações (por exemplo, uma senhora veio da fábrica para a escola onde Nina estuda, a fim de dar uma palestra). E se confundem quando diante de expressões como “muito maior que”  ou “muitas vezes mais”.
 
Por outro lado, lesões nas áreas terciárias da terceira unidade funcional, isto é, nas áreas préfrontais, levam a diversas alterações motoras e cognitivas pela impossibilidade de se realizar programas de atividades e a verificação de seus desempenhos.
 
Lhermitte (apud Miller), estudando dois pacientes que sofreram ablações extensas, bilaterais, dos lobos frontais, observou que eles são incapazes de captar o sentido global de uma situação social, respondendo, apenas, a detalhes da mesma, o que o levou a cunhar, para descrever esse tipo de comportamento deficitário o termo “síndrome de dependência ambiental”. Estes pacientes tornaram-se, no dizer de Laurence Miller, “escravos virtuais de ‘deixas’ contextuais isoladas”.
 
Embora nem todos aceitem, nós acreditamos que outras espécies são capazes de desenvolver abstrações. Alguns primatas e cetáceos, sem dúvida, têm concepções abstratas, mas elas devem ser muito tênues e, certamente, nunca evoluem, como em nós, humanos, para um estágio de alta criatividade. E, mesmo se isso ocorresse, seria uma criatividade inócua, pois eles não disporiam dos atributos físicos para, a partir dela, construir alguma coisa que se pudesse considerar relevante e concreto. Não obstante, o exercício de pensamentos conscientes e abstratos, entre golfinhos e símios superiores, tem sido ampla e nitidamente evidenciado.
 
Premeditação, ainda que de pequenos atos, ações conjugadas e astúcia racionalmente concebida são comportamentos que envolvem, necessariamente, o emprego de abstrações.
Ressalte-se que estamos nos referindo a um tipo de astúcia calcada na lógica, não na intuição. 

A astúcia intuitiva é, em maior ou menor grau, 
inerente a todos os animais, por se tratar 
de um importante instrumento do arsenal de sobrevivência 
dos seres e das espécies.
 
Os famosos estudos realizados por Wolfgang Kohler nas ilhas Canárias demonstram, claramente, o uso dessa astúcia racional e de ações conjugadas por macacos superiores. Entre as inúmeras observações conduzidas por esse cientista, existe uma que, não só por seu aspecto humorístico mas por caracterizar a existência de componente abstrato, merece ser aqui assinalada. Ela tem a ver com a atitude maliciosa e maldosa praticada por dois chimpanzés contra uma galinha: um dos macacos apresenta um alimento para a ave, encorajando-a a se aproximar. Tão logo ela o faz, recebe uma pancada, desferida pelo outro macaco, com um pedaço de arame que este mantivera escondido atrás das costas.  A galinha se retrai mas logo cai de novo na armadilha, já que não consegue estabelecer a associação entre a oferta do alimento e a pancada recebida. E a coisa prossegue até que os macacos, possivelmente cansados da brincadeira, afastam-se do estúpido galináceo. O componente abstrato se denuncia pela evidente premeditação de uma conspiração elaborada e executada, em uma ação conjunta, pelos dois chimpanzés.
 
O pensamento abstrato pode surgir de estímulos externos captados pelos órgãos sensoriais, de lembranças evocadas da memória ou simplesmente de mensagens provenientes de locais indeterminados nos recônditos da mente e sem qualquer traço de lembrança consciente. Era como se tivessem surgido do nada!
 
Contudo, independentemente da origem do estímulo desencadeante, os pensamentos abstratos representam idéias ou sentimentos, não dimensionáveis, desprovidos de forma, tamanho ou cor, como amor, paixão, ódio ou tristeza - abstrações límbicas, ou algo assim como sentido ético e moral, música ou matemática - abstrações neocorticais.
Também a habilidade que tem a mente de selecionar novas rotas ou novos meios para alcançar um determinado objetivo é algo que, certamente, tem a ver com o pensamento abstrato.
 
As vezes, o pensamento abstrato, tal como a concepção espacial de alguma coisa – possivelmente processada algures no hemisfério direito, adquire um caráter tridimensional. Essa tridimensionalidade permite que o processo mental evolua para uma criatividade mais definida, ou seja, para a capacidade de, a partir da associação inteligente de idéias abstratas, “formar” um pensamento tridimensional que permita a concepção, e depois, eventualmente, a construção de novas coisas concretas.
 
Em outras ocasiões, a abstração inicial gera novos conceitos, igualmente abstratos, mas que evoluem para a formulação de leis ou princípios físicos do mais alto sentido prático.
É o caso da concepção geométrica do matemático Hilbert sobre a intercepção de linhas paralelas, que acabou se tornando a base da teoria da gravitação elaborada por Einstein.
Ou da idéia do mesmo Hilbert de "construir" espaços abstratos multidimensionais, através da aplicação de funções matemáticas simples que, 25 anos depois, iriam constituir um dos fundamentos da mecânica quântica.
 
Mas o pensamento abstrato proporciona algo mais: quando envolvido num processo de criatividade, ele adquire uma tal magnitude, que acaba por se constituir em forte estimulo, capaz de promover a proliferação dendrito-axonial, criando novas sinápses. Torna-se, assim, um poderoso estimulador do aprendizado, do conhecimento e da potencialidade de memorização.
 
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Os Autores
 

MD, PhD Professor Titular e Mestre da UFRJ. Livre-Docente da UFF. Coordenador Científico e Diretor do Departamento de Neurociências do Instituto da Pessoa Humana (RJ). Fellow em Pesquisa pelo Saint Vincent Charity Hospital, Cleveland, USA. Membro Titular da Academia Brasileira de Medicina Militar. Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores, Diplomado pela Escola Superior de Guerra (ESG). Membro do Corpo Editorial da revista Cérebro & Mente. Autor de "Princípios de Neurociências", entre diversos outros.jmartins@rio.nutecnet.com.br

 

Júlio Amaral, MD - Professor de farmacologia clínica, anatomia e fisiologia . Gerente Médico Científico da Merck S/A Indústrias Químicas. Redator de manuais didáticos sobre anatomia, fisiologia e farmacologia para uso da Merck. Supervisor de editoração das publicações científicas: Senecta, Galenus e Sinapse. Redator de protocolos e relatórios de pesquisas clínicas de produtos, a partir de 1978. Coordenador adjunto dos cursos de formação de especialistas em Oxidologia, promovidos pelo Instituto da Pessoa Humana (IPH) e Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO). Chefe do Serviço de Psiquiatria do Departamento de Neurociências do Instituto da Pessoa Humana (IPH). Co-autor do livro 'Princípios de Neurociências, entre outros. Email: julioamaral@pobox.com



 
  
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Fonte:
   Origem: Jornal O Globo - 13/10/2001
http://grupelho.com/artigos/simplesecomplexas.htm

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