terça-feira, 12 de julho de 2011

A ARTE DE CONFECCIONAR LIVROS - Washington Irving


"Se for verdadeira 
a grave sentença de Sinésio: 
— "É maior ofensa furtar o labor dos mortos 
do que suas vestes", que será da maioria dos escritores?"

(Anatomia da Melancolia — Burton)


A extrema fecundidade do prelo e o dom de tantas cabeças que da natureza só devem ter merecido a praga da esterilidade, apresentarem produção volumosa, foram sempre motivo de perplexidade para mim. 
Mas, à medida que caminhamos pela estrada da vida, os motivos de perplexidade diminuem diariamente e vamos descobrindo causas muito simples para os efeitos que tanto nos maravilham. 
Foi o que me sucedeu, na minha peregrinação por esta grande metrópole, quando se me deparou uma cena que me revelou alguns dos mistérios da indústria da confecção de livros e, de uma vez por todas, dissipou o meu encanto.

Estava eu num dia de verão vagando pelos grandes salões do Museu Britânico, com a languidez característica de quem lealmente deseja percorrer um museu no período estival; ora espiando as vitrinas de minerais, ora estudando os hieróglifos duma múmia egípcia e noutras vezes tentando com sucesso quase idêntico compreender as pinturas alegóricas das cúpulas, quando nessa marcha vagarosa de bisbilhotice, tive voltada a atenção para uma porta distante, no fundo de uma série de galerias.

Estava fechada, mas a todo momento abria-se e algum ser estranho, em regra trajado de preto, escapulia e deslizava pelos salões sem reparar em nenhum dos objectos em redor.

Aquele ar de mistério 
aguçou a minha indolente curiosidade.

Decidi-me tentar a passagem daquele estreito para explorar as regiões desconhecidas, veladas pela porta. Esta cedeu à minha mão com aquela facilidade com que os portões dos castelos encantados cedem aos aventureiros cavaleiros errantes. E assim encontrei-me num cómodo espaçoso, cercado de grandes estantes de livros veneráveis. Acima das estantes e bem debaixo da cornija estavam enfileirados inúmeros retratos escuros de autores antigos.

Viam-se na sala algumas mesas longas com espaço para leitura e lugar para escrever, os quais eram ocupados por umas personagens pálidas e estudiosas, que examinavam atentamente volumes empoeirados, num trabalho minucioso de investigação de manuscritos embolo-rados, dos quais copiavam abundantes notas.

Um rigoroso silêncio reinava nesse misterioso ambiente, só se ouvindo o arranhar das penas sobre folhas de papel, ou, às vezes, o suspiro profundo de algum daqueles sábios, quando se erguia um pouco para virar a página de um velho fólio; sem dúvida, partindo daquela concavidade e flatulência comuns a investigações eruditas.

De vez em quando, uma dessas personalidades escrevia alguma coisa numa pequena tira de papel e tocava a campainha, ocasionando o aparecimento imediato de um fâmulo, que, em profundo silêncio, apanhava o papel, desaparecia da sala e logo regressava carregado de pesados volumes, sobre os quais o outro caía de unhas e dentes com voracidade esfaimada.
Já não tinha dúvidas de que me encontrava diante de uma seita de magos, profundamente empenhados no estudo das ciências ocultas.

A cena lembrava-me um velho conto árabe, segundo o qual um filósofo encerrou-se numa biblioteca encantada no seio de uma montanha que só se abria uma vez por ano, aonde ele obrigava os espíritos locais a levarem-lhe livros sobre tudo que existisse de conhecimentos ocultos.

Em consequência, no fim do ano, quando o portão mágico mais uma vez se escancarava, ele surgia do interior tão versado na doutrina proibida que podia arrojar-se muito acima das cabeças da multidão e controlar as forças da natureza.

Já agora escravo de uma curiosidade avassaladora, sussur-rei a um dos fâmulos que transpunha a porta, solicitando–lhe a explicação daquela estranha cena. Poucas palavras elucidaram a questão. Fui informado de que aquelas personagens misteriosas, as quais eu havia tomado por magos, eram quase todas autores, no verdadeiro afã de fabricar livros.

Em verdade, encontrava-me no salão de leituras da grande Biblioteca Britânica — uma colecção imensa de volumes de todas as épocas e línguas, muitos deles já olvidados, e dos quais a maioria é lida muito raramente: um desses poços de literatura obsoleta em que se abeberam os autores modernos para retirar mancheias de lições clássicas, ou "Inglês genuíno, impoluto", com o que preenchem as lacunas de seus escassos veios de conhecimentos.

Senhor do segredo, instalei-me num canto e passei a observar o processo dessa manufactura de livros. Reparei num homem magro, de olhar fatigado, que só examinava os livros mais rendilhados de traças, impressos em preto. Evidentemente, estava elaborando algum trabalho de profunda erudição a ser adquirido por homens cuja preocupação é parecerem cultos, conservado numa conspícua prateleira de estante, ou aberto em cima da mesa — mas nunca lido.

Notei que o homem retirava de vez em quando um pedaço de biscoito do bolso e o mordia. Deixo à interpretação de observadores mais minuciosos apurar se se tratava de seu jantar, ou se ele se esforçava por vencer a exaustão do estômago devida a muita meditação sobre trabalhos cansativos.

Via-se um guapo cavalheiro, trajando uma roupa brilhante, com uma fisionomia que demonstrava alegria e loquacidade, o que evidenciava um autor em boa harmonia com seu editor. Após um exame minucioso, reconheci nele um diligente coleccionador de miscelâneas que constituíram autênticos "best-sellers".

Senti curiosidade de ver como manipulava sua mercadoria. Mais do que qualquer outro, fazia alarde e exibição do processo. Mergulhava em vários volumes, folheava nervosamente manuscritos, retirando fragmentos ora de um, ora de outro, "linha por linha, preceito por preceito, um trecho aqui, ali outro trecho".

O conteúdo do seu livro parecia heterogéneo como o da caldeira das bruxas, em Macbeth. Ora indicador, ora polegar, "artelho de rã" e "picada de verme cego", ao que adicionava um pouco da sua lavra, como "sangue de bugio" para fazer a mistura "viscosa e de sabor".

Reflectindo melhor — pensei eu — essa apropriação indébita dos autores não será movida por propósitos sensatos? Não será o meio adoptado pela Providência para que as sementes da cultura e da sabedoria sejam preservadas de geração em geração, a despeito da inevitável decadência das obras nas quais pela primeira vez foram apresentadas?

Sabemos que a natureza muito sabiamente, 
embora caprichosamente, cuidou do transporte 
de sementes de regiões para regiões, 
no papo de determinados pássaros. 

Assim, animais
que aparentemente pouco melhores são 
do que a tarasca, pilhadores fora da lei de pomares
e de campos de trigo, são em verdade, 
carregadores da natureza, para difusão 
e perpetuação de suas bênçãos.

Do mesmo modo, as belezas e os pensamentos nobres dos autores antigos e obsoletos são capturados nessas incursões de escritores piratas e lançados novamente em circulação, para florescência e ostentação de frutos, num remoto e distante futuro.

Muitos de seus trabalhos sofrem também uma espécie de metempsicose e ressurgem sob nova forma. Aquilo que outrora constitutiu uma vibrante página de história, revive agora em forma de romance; uma velha lenda transforma-se numa peça moderna de teatro e um sóbrio tratado de filosofia fornece o arcabuço de ensaios pretensiosos e espalhafatosos. Assim acontece nas matas americanas.
Quando se faz a queimada duma floresta 
de pinheiros de porte, uma progénie 
de carvalhos anões brota em seu lugar 
e nunca se vê o tronco prostrado 
de uma árvore apodrecer no solo.
Antes, ele dá vida a uma tribo inteira de fungos.

Não lamentemos, portanto, a decadência e o olvido em que caem os escritores antigos. Apenas submetem-se à grande lei que sentencia: Na natureza, nada se cria, nada se perde; tudo se transforma. Geração sucede geração, na vida animal e na vegetal, mas o princípio vital transmite-se à posteridade e as espécies continuam a florescer.

Do mesmo modo, autores geram autores e, 
já tendo produzido uma prole numerosa,
vão, com idade provecta, descansar com seus genitores, 
isto é, com os autores que os precederam 
e dos quais provieram.

Enquanto me entregava a essas divagações da imaginação, unha apoiado a cabeça numa pilha de conspícuos fólios. Se devido às emanações soporíficas dessas obras, ou ao pro-fundo silêncio da sala, ou à lassidão resultante de tanto caminhar, ou ao mau vezo de cochilar em horas impróprias e lugares que tanto me cansam, o certo é que caí numa modorra.

A imaginação, todavia, permaneceu activa, e a mesma cena permaneceu diante dos olhos mentais, apenas com ligeiras durações de detalhes. Sonhei que a sala ainda estava decorada com os retratos de autores antigos, mas que o número deles estava redobrado.

As compridas mesas haviam desaparecido e, no lugar dos sábios magos, eu contemplava uma multidão maltrapilha como a que se vê nas cercanias do grande depósito de roupas usadas de Monmouth Street. todas as vezes que eles agadanhavam um livro, por uma dessas incongruências comuns em sonhos, parecia-me que este se transformava numa veste de moda antiga ou alienígena, com a qual se trajavam.

Observei, contudo, que nenhum dos homens quis vestir-se de modo uniforme. Antes, tomavam a manga de um, o gorro de outro, a blusa de um terceiro, enfeitando-se, assim, fragmentadamente, enquanto alguns dos trapos com que inicialmente se vestiam, às vezes apareciam à flor da nova roupagem emprestada.

Havia também um padre róseo, altivo e bem nutrido, que observei olhando de soslaio alguns polemistas embolo-rados, através de uma lente. Logo concebeu envolver-se no manto luminoso de um dos velhos genitores e, tendo furtado a barba grisalha de outro, esforçou-se por parecer excessivamente sábio. Mas a vulgaridade de seu semblante inutilizou a astúcia do plano.

Um cavalheiro de aparência doentia mostrava-se ocupado enfeitando uma roupa muito leve com fios de ouro retirados de alguns vestidos da corte da rainha Elizabeth.

Outro havia-se enfeitado magnificamente com um manuscrito iluminado, havia colocado um ramalhete no peito, seleccionado do Paraíso de Instrumentos Delicados e, tendo colocado tombado na cabeça o chapéu de Sir Philip Sidney, empertigou-se e retirou-se com um ar esquisito de elegância vulgar.

Um terceiro cavalheiro, de estatura muito baixa, havia-se ataviado corajosamente com os despojos de vários tratados obscuros de filosofia, de modo que ostentava uma frente soberba, mas, na retaguarda, estava lamentavelmente esfarrapado, e percebi que havia feito sua roupa branca de pedaços de pergaminho de um autor latino.

Havia alguns cavalheiros bem vestidos, é certo, que só se apoderaram de uma gema ou outra jóia, as quais cintilavam sem contudo ofuscar as demais peças do seu vestuário. Outros, ainda, pareciam contemplar os costumes dos velhos escritores unicamente para plasmarem suas tendências e para adquirirem seus estilos e espírito. Mas — pesa-me declarar — a maioria se comprazia em ataviar-se, da cabeça aos pés, de remendos, da maneira já mencionada.

Não deixarei de comentar um génio de calções pardos e polainas e um chapéu arcádico cuja violenta paixão era o pastoral, mas cujas incursões no plano rural limitaram-se à clássica pesquisa da Colina das Primaveras e à solidão do Parque do Regente.

Enfeitara-se de grinaldas e fitas à moda dos velhos poetas pastorais. Deixando pender a cabeça para um lado, agitava-se com um fantástico ar de mau agouro, "monologando pelos verdes campos".

A personagem que mais despertou a minha atenção foi um velho cavalheiro pragmático, em roupas clericais, a cabeça impressionantemente descomunal, quadrada e calva. Entrou na sala ofegante e bufando, abriu caminho na multidão com um ar de imperturbável autoconfiança e, apode-rando-se de um volume grego, in-quarto, jogou-o à cabeça e escapuliu-se majestosamente, numa formidável peruca frisada.

Em meio a esse festim literário mascarado, de inopino um grito ressoou de todos os cantos: "Ladrões!, ladrões!"

Encarei melhor e, pasmai-vos, os retratos das paredes tornaram-se animados! Os velhos escritores projectaram-se para fora da tela. Primeiro a cabeça, depois um ombro. Por um momento, contemplaram curiosamente a multidão matizada e, depois, desceram com fúria nos olhos para reclamar sua propriedade assaltada.
A cena da fuga precipitada 
e da confusão reinante desafia 
qualquer poder de descrição. 

Os infelizes delinquentes esforçaram-se debalde por escapar com o produto do seu crime. Num canto via-se meia dúzia de velhos frades despindo um professor moderno. Em outro, houve uma triste devastação nas fileiras dos autores dramáticos hodiernos.

Beaumont e Fletcher, lado a lado, lutaram encarniçadamente no campo de batalha, como Castor e Pólux, e o impetuoso Ben Jonson realizava maiores maravilhas do que quando voluntário do exército em Flandres.

Quanto ao compilador de fragmentos, o cavalheiro baixo de quem já me ocupei, vestira-se com tantas mesclas e cores qual um arlequim e, no seu caso, notei um concurso tão feroz de reclamantes como no caso do cadáver de Pátroclo.

Constrangeu-me ver tantos homens aos quais me acostumara a contemplar com admiração e respeito, obrigados agora a fugir com um mero trapo a cobrir-lhes a nudez.

Nesse momento, deparou-se-me o cavalheiro idoso, pragmático, com a peruca frisada, fugindo espectacularmente, com terror pânico, de uma dezena de autores que berravam a plenos pulmões atrás de si! Já estavam junto aos seus calcanhares.

Num abrir e fechar de olhos lá se foi a peruca. Em cada canto, alguma peça do seu vestuário era capturada. E, assim, em poucos momentos, de sua pompa dominadora só restava um mísero "conviva pelado". E bateu em retirada, tendo apenas algumas fivelas e trapos flutuando nas costas.

Era algo tão ridículo a catástrofe desse sábio tebano que prorrompi numa gargalhada irrefreável. Quebrou-se a ilusão, findaram o tumulto e a confusão.

O salão readquiriu sua fisionomia costumeira. Os velhos escritores recolheram–se às molduras das suas telas e penduraram-se nas paredes com melancólica solenidade. Reencontrei-me desperto, por fim, no meu canto, tendo, à minha volta, mirando-me com espanto, inúmeras traças humanas.
 
Nada do sonho fora real, 
excepto o estouro da minha risada,
um ruído nunca dantes ouvido naquele solene santuário,
e tão escandaloso aos ouvidos dos sábios
que electrizou a confraria.

O bibliotecário aproximou-se e indagou-me se possuía ingresso. A princípio não o entendi, mas logo descobri que a biblioteca era uma espécie de retiro de literatos, sujeito às leis da caça, e que ninguém pode pretender fazer caçadas ali, sem permissão especial.

Numa palavra, convenci-me de que era um caçador furtivo e apressei-me em fazer uma retirada precipitada, pois do contrário teria sobre mim um bando desenfreado de escritores.



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Home Biblioteca, Literatura.
Washington Irving
(Nova Iorque, 3 de abril de 1783
– 28 de novembro de 1859)
Fonte:
 CONSCIÊNCIA:.ORG
 Ensaístas Americanos,
Clássicos Jackson. Tradução de Sarmento de Beires e José D
http://www.consciencia.org/a-arte-de-confeccionar-livros-washington-irving

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