segunda-feira, 25 de abril de 2011

O LUTO DA ARTE - Marcia Tiburi

A tese da morte da arte ainda significa mais do que parece


Damien Hirst: a arte contemporânea, sendo trabalho do luto, prova sempre a experiência do desgosto

A discussão sobre a morte da arte teve um lugar essencial nas Lições de Estética, de Hegel, no século 19.

Não se pode perder de vista que a morte da arte à qual Hegel se referia era a da arte bela e não da arte de modo geral. Se Hegel tem razão, em havendo uma morte da arte que não deve ser generalizada, trata-se de entender que tipo de arte, para além da arte bela, sobreviveu. 

Em um século de genocídios, 
ditaduras e violências de toda sorte, 
a arte é a memória da sua própria morte.  
  
A pré-história dessa percepção está na Crítica da Faculdade de Julgar, de Kant, que antes afirmou a existência de dois sentimentos, o belo e o sublime, como sustentáculos da experiência estética.

Belo – a sensação de prazer com os objetos agradáveis – e sublime – um misto de prazer com desprazer – são formas de acesso subjetivo à beleza, tanto da natureza quanto das artes. 

Kant define a arte bela 
como aquela que pode representar de modo belo 
até mesmo as coisas feias.

A tarefa histórica da arte sempre foi
a de colocar beleza no mundo e suplantar o feio. 
Criamos essa expectativa 
e isso hoje em dia não nos ajuda. 
       
Mas o próprio Kant disse que havia uma espécie de feiura, que não pode ser representada de acordo com a natureza sem cancelar a complacência estética, ou seja, a nossa capacidade de perceber a beleza em geral e a beleza da arte. Kant refere-se à feiura que desperta asco. 

O asco, segundo Kant, é uma “sensação peculiar” marcada pela imposição do objeto feio que imediatamente se nos lança sobre os sentidos, sem que desejemos aceitar sua presença. O filósofo espanhol Eugenio Trías dá um exemplo repugnante só de ler: quem pisa em um rato morto e eviscerado na rua tem a sensação de que ele vai parar dentro da boca. A experiência do asco se dá como se um prato de merda fosse oferecido para se comer.        

O asco é uma espécie de sentimento impossível, 
por estar na contramão do gosto.

Podemos traduzi-lo por nojo. E nojo é algo que se traduz por luto. A experiência do asco ou do nojo, como experiência do des-gosto, é da mesma ordem da experiência do luto, de algo que não desejamos e que mesmo assim se impõe. A lástima pela perda de um objeto amado, mas também do gosto – seja pela arte, seja pela vida – que acompanhava aquele objeto é experiência disseminada em nossa cultura, da qual a arte atual vem a ser a apresentação mais clara.        
A arte, do asco ao luto
O luto é sempre uma reação à perda de um objeto amado. 

É, portanto, a experiência da morte enquanto ela pode ser conhecida: a morte dos outros, das coisas, das experiências. Até mesmo, como em Luto e Melancolia, de Freud, a perda de uma abstração, de um ideal qualquer. Nunca a da epicuriana morte que não encontraremos, pois já não estaremos quando ela aparecer. 

A arte contemporânea é experiência enlutada e, 
por isso, dói tanto tratar dela. 

Encará-la é experimentar o luto na forma de sua exposição possível. Mas, se há entre arte e vida, entre ficção e realidade, uma relação que é sempre de mimese, por imitação ou por mimetismo, e se há tanta perda na vida, a arte não deveria ser nosso resgate para além do que a vida nos dá sem nenhuma elaboração?        

A promessa romântica da arte é que ela viria nos salvar da vida. Mas, após a perda da ingenuidade romântica, por que ainda esperamos tanto da arte?

Arte é apenas um conceito que tem tão pouco valor quanto pouco uso nos dias de hoje. No entanto, arte ainda é, como conceito, algo que vai na frente da nossa sempre atrasada sensibilidade. 

Que a arte mova nossa sensibilidade é a esperança sem fundamento de muitos, mas sensibilidade é uma formulação imprecisa entre o perigoso culto da emoção e os sentimentos que só são elaborados mediante a interferência da racionalidade capaz de criar conceitos. Não há chance de que arte hoje seja mais do que uma construção para fazer pensar.       

Temos na experiência contemporânea da arte a autopresentificação do seu próprio luto. Como se a arte ainda estivesse no período enojado em que tem que se haver com a memória de um cadáver que é ela mesma e que, na verdade, mimetiza o estado das coisas de um mundo em crise de sentido. Assim é que a obsolescência do conceito de arte o coloca na posição de um conceito-memória. Um conceito que foi válido, mas que perdeu sua circunstância na atualidade. 

Arte não é mais a bela arte, 
ainda que possamos com muito esforço 
descobrir nas obras que a beleza também é um conceito e,
como tal, uma visão das coisas.  
      
O paradoxo do gosto

O que a arte contemporânea nos sugere é a experiência do paradoxo do gosto. Como é possível “apreciar” esteticamente aquilo que repugna se neste momento a experiência estética como mediação entre sensibilidade e racionalidade foi anulada?

A questão é que a arte contemporânea, 
sendo trabalho do luto, 
acontecendo na contramão do gosto,
provoca sempre a experiência do desgosto.

Por isso, a arte conceitual tem tanto espaço em nosso tempo, por chamar ao pensamento em tempos de cancelamento da sensibilidade. É como se toda obra nos enviasse a mensagem: se não podemos “gostar”, podemos “pensar”.

É o paradoxo da inestética: 
a sensação é de perda da sensibilidade na arte; 
mais do que um problema da arte, 
é problema da cultura na qual ela surge. 

Um artista como Damien Hirst, com seus bezerros e tubarões no formol, não é, portanto, julgável segundo o padrão do gosto pela arte bela, porque estamos em tempos de perda do gosto. O que será que ele nos mostra que não sabemos pensar?        

Com isso se consegue compreender o que acontece com a arte atual.

Ela é a experiência da morte da própria arte bela 
nestes tempos de desgraça cultural.

Tempos tensos: de um lado tragicofílicos – desejamos a tragédia – e de outro tragicofóbicos – evitamos a morte a qualquer custo –, como disse Hans Gumbrecht. Podemos dizer, nestes tempos, que a arte se faz na ordem do trágico, este sentimento da “morte em mim”, da morte como experiência subjetiva, como imagem da melancolia que nada mais é do que a morte do eu e do pensamento que sempre foi a prova de que existia algo chamado “eu”. 

Não, não exageremos.        

A arte contemporânea não é nem trágica nem melancólica.

Enlutada, ela nos pede que ultrapassemos a memória da morte e reinventemos o presente. Só o que impede isso é o capital culto à desgraça em que vivemos hoje. 

O gozo atual é com a ideologia da morte como um fim, quando, na verdade, estúpidos e conceitualmente avarentos, não sabemos entender o valor e o poder das transformações históricas das quais a arte nos dá apenas uma imagem para nos fazer acordar. 

Mas quando até mesmo a desgraça se tornou um “capital”, haverá espaço para a arte que denuncia o seu caráter capitalista? 

Marcia Tiburi
Publicado em 05 de abril de 2010
Fonte:
Revista CULT.
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/04/o-luto-da-arte/

Um comentário:

Radeir disse...

COMENTÁRIO DO TEXTO ORIGINAL : Revista CULT.
maria tomaselli |
29/04/2010

Henkai-pan e panta-rhei, desde os gregos as coisas desse nosso mundo tão frágil e ao mesmo tempo tão sólido são colocadas assim: na dialética do tudo repousa e tudo flui. Há tempos em que é preciso se mexer, outros em que o silêncio e a contemplação são fundamentais. Sobre isso fiquei matutando nos meus passeios solitários que fiz recentemente pelas florestas e bosques da minha terra natal, o Tirol, revivendo os anos de minha juventude e adolescência, refazendo os mesmos caminhos. As árvores, fiquei pensando, estão aqui há séculos, sempre no mesmo lugar, viram guerras, viram jovens, hoje velhos, turistas que vão e vem, animais que passam, correm, morrem, e elas estão aqui, se sucedendo também em ritmo sereno, devagar, calmos. Esta paz quero nos meus quadros de hoje, que eles sejam um refúgio para o silêncio, não uma coisa morta, petrificada, mas a sucessão deles como uma onda do mar, uma unidade que se desdobra em movimentos calmos, sempre indo, fluindo, até chegar ao fim, a uma praia onde vai se acabar; aparentemente, porque por baixo a onda reflui e de outro jeito continua, se mistura de novo com a água que vem. Nossa vida é assim, ao morrermos deixamos de agir, mas o que nossa geração fez fica como herança boa ou má para as ondas vindouras de gente.

Uma pintura é o outro lado do flat-screen que hoje predomina nas paredes das casas, sempre em movimento, sempre piscando, sempre barulhento, tal qual o dia das pessoas no trabalho, nas ruas, a mesmice dentro e fora de casa. Hoje uma pintura deveria ser o espaço do refúgio, da segurança, da descoberta, do estudo, da contemplação, do repouso.

Existem períodos na história da arte em que a arte precisa ser mais um fator agente, revolucionário, quando a vida é aristocratizada ou aburguesada demais, presa em conceitos e preconceitos que se materializam em códigos predeterminados nas artes e na arquitetura que não se renovam para não perderem seu status quo. Mas o mundo gira, novas gerações aparecem, novos valores mudam as artes. Essas novidades, porém, essas quebras dos dogmas podem muito fácil elas mesmas virarem dogma e petrificarem-se. No momento, penso, estamos assistindo à revolta pela revolta, sem saber contra o que se revoltar, já que tudo pode ser, ”anything goes”. Nesse período da morte de tudo, especialmente das técnicas milenares, assistimos a depredações, pichações, bienais do vazio. Curadores, sem saber o que pensar e fazer, apelam para a politização das artes, em vez de se deixarem seduzir pela arte. Tem também uma geração por aqui que parece sobra dos hippies, agora velhos e parados no tempo. Estamos todos perdidos, tão perdidos que autoridades tentam achar um meio legal pra retirar das ruas o que chamam de “monstromentos” e leitores de jornais sugerem que se retirem também os prédios feios. Muitos jovens, no entanto, começaram a rever essas declarações de morte de tudo, suas vidas são pujantes, suas aspirações maiores, querem construir, aprender e também redescobrir velhas técnicas para novas finalidades, em vez de demolir. São mais globalizados e tolerantes.

Mas, voltando à minha floresta tirolesa e seu silêncio duradouro: Para mim, neste momento de minha vida, o importante é tentar criar um templo de depuração, onde os milênios e sua sabedoria não se perderam, mas onde também pulsa o balanço da vida, a cada dia renovada. A história é um pêndulo que vai de um extremo ao outro, mas sempre em movimento. Henkai-pan no panta-rhei. Ou, como diria Fausto: “Verweile, Augenblick, Du bist so schön”.
#
Tchelo |
15/05/2010

Quem inventou a arte? Os deuses ou os homens? Ou seria Ele, O Deus? Não sei. A arte existe? O que é arte? Seria mais uma palavra a se decifrar e encontrar infindáveis simbolismos, conceitos, histórias sem fim, etc e tal...De novo, ser ou não ser? Arte e vida…