51segundos
AS IDEIAS DE VAN GOGH.As cartas de Van Gogh forneceram material para inúmeras interpretações. Serviram a seus biógrafos, e de modo particular a todos aqueles que buscaram nelas os sintomas e as causas de suas perturbações psíquicas.
Entretanto, além das notícias de acontecimentos concretos - a hora em que foi feita uma visita, a data de chegada a uma cidade - e as notas sobre o tema de um livro ou de um quadro em execução, o que ele escreveu omite, consciente ou inconscientemente, todos os episódios que mais de perto disseram respeito a sua vida íntima. Apesar do tom sincero e espontâneo, não se deve esquecer que estas cartas eram dirigidas sobretudo a um irmão muito mais moço (no início de sua correspondência, Vincent tinha 19 anos e Théo 15) que, além de um confidente, era um seu discípulo e admirador. Com o passar do tempo, as posições se invertem: Théo se transforma em benfeitor de Vincent. Isso coloca o artista em uma posição dê inferioridade e talvez até de culpa diante de um irmão que lhe dá apoio financeiro, mesmo estando sobrecarregado de urgentes dívidas familiares. Desde o período arlesiano, sobretudo quando Théo constitui família, Vincent se sente ao mesmo tempo desesperado e frustrado.
Por Gauguin, cinco anos mais velho do que ele, Vincent nutria um sentimento misto de admiração, respeito e submissão com, às vezes, alguns impulsos de rebelião. Sentia-se mais livre diante de Émile Bernard, mas este, muito ligado a Gauguin, representava quase um intercessor junto ao autoritário mestre
de Pont-Aven.
Por fim, parece que Van Gogh nunca estabeleceu uma relação de verdadeira intimidade com sua mãe, e sua jovem irmã não estava preparada para receber cartas e confidências. Assim, o homem que se revela através destas cartas continuará a despertar o interesse e a curiosidade dos psicólogos que estudam sua personalidade ardente e apaixonada, cuja essência continua sendo, ainda, uma incógnita.
Parece-nos interessante reconsiderar o conjunto desta correspondência para tentar pôr em evidência aquilo que Van Gogh escreveu sobre seu trabalho como pintor. A inteligência, a lucidez e o equilíbrio do qual dá provas, apesar de todas as crises físicas e morais, são notáveis e dão o testemunho da sua
certeza - ele, então totalmente desconhecido - de estar executando uma obra importante para o futuro.Sua obra, com efeito, prenuncia as maiores inovações plásticas do século 20 e marca profundamente o nascimento e o desabrochar de algumas das mais fortes personalidades artísticas de nosso século.
No início, a pintura de Van Gogh, muito marcada por sua vocação missionária, preocupada em revelar a miséria e a tristeza das condições dos operários e da vida do campo, é escura e grave, de certa forma ainda ligada a uma tradição naturalista e social. Entretanto, Van Gogh já procura uma intensidade
de expressão e demonstra uma força de simplificação que o afastam inteiramente de qualquer herança acadêmica e de todas as preocupações naturalistas contemporâneas.
A partir de 1886, quando a viagem a Paris provocou uma total revolução na sua maneira de encarar as coisas e em toda sua concepção de vida, suas cartas tornam-se mais interessantes. Vincent se descobre.
“... o ar da França clareia as idéias e faz bem, muito bem, todo o bem possível. Freqüentei por três ou quatro meses o atelier Cormon, mas isto não foi tão útil como eu esperava. Pode ser que seja minha culpa; acontece, entretanto, que saí de lá como saí de Anvers: e depois trabalhei sozinho. E acredite que desde então sinto-me, também eu, sobrando.”
Na primeira carta a Bernard -escreve:
“... continuo a acreditar que você se aperceberá de que nos ateliers não se aprende um níquel de pintura e nem de como viver; e que se é obrigado a aprender a viver como a pintar sem recorrer aos velhos truques e aos velhos
trompe-l’oeil dos intrigantes”.
Ele vê os trabalhos dos impressionistas, entra em contato com os jovens pintores que gravitam em torno deste movimento e se preparam para renovar-lhe as bases: Seurat, Signac, Anquetin, Gauguin, Bernard, Lautrec. A sua paleta torna-se clara e límpida.
“Em Anvers não sabia nem mesmo o que eram os impressionistas; agora que os vi e mesmo não fazendo ainda parte de seu círculo, admirei muito alguns de seus trabalhos.”
“Agora, uma palavra sobre aquilo que eu próprio faço ...
Pintei uma série de estudos de cores: flores simplesmente
- papoulas vermelhas, flores-de-lis, miosótis, rosas bran-
cas e cor-de-rosa, e crisântemos amarelos; procurando a
contraposição do azul com o laranja-forte, do vermelho
com o verde, do amarelo com o violeta, procurando tons
fragmentados e neutros, para harmonizar a violência dos
extremos, procurando tornar as cores intensas e não uma
harmonia em cinza. Desde que vi os impressionistas, as-
seguro-lhe que nem as suas cores e nem as minhas, na
sua interpretação, são exatamente semelhantes as suas
teorias.” (Carta endereçada a H. M. Levens, um pintor inglês que
Pintei uma série de estudos de cores: flores simplesmente
- papoulas vermelhas, flores-de-lis, miosótis, rosas bran-
cas e cor-de-rosa, e crisântemos amarelos; procurando a
contraposição do azul com o laranja-forte, do vermelho
com o verde, do amarelo com o violeta, procurando tons
fragmentados e neutros, para harmonizar a violência dos
extremos, procurando tornar as cores intensas e não uma
harmonia em cinza. Desde que vi os impressionistas, as-
seguro-lhe que nem as suas cores e nem as minhas, na
sua interpretação, são exatamente semelhantes as suas
teorias.” (Carta endereçada a H. M. Levens, um pintor inglês que
Van Gogh conhecera em Anvers.)
“Executei também uma dúzia de paisagens
decididamente verdesou decididamente azuis.”
Sua admiração, todavia, não é incondicional e sem lucidez:
“Ouviu-se falar dos impressionistas, dos quais se tem a priori
uma excelente opinião; ao vê- los pela primeira vez, fica-se amargamente desiludido: parece que tudo é descuidado, feio, mal pintado, mal desenhado, com cores erradas, enfim, tudo o que há de pior. Foi esta, portanto, a minha impressão, na primeira vez, assim que cheguei a Paris...”
No exemplo dos impressionistas, encontrou, todavia, uma regra de trabalho. Em 1887 escreve à
irmã:
irmã:
“... tive a ocasião de aprofundar a questão da cor. No ano passado quase
que só pintei flores, para habituar-me a usar o rosa, o verde, claro ou
forte, o azul, o violeta, o amarelo, o laranja, um belo vermelho. Este
verão; enquanto pintava paisagens em Asnières, vi mais cores que antes”,
Um ano depois, em 1888, descobrirá Arles, “o país dos álamos e do sol
de enxofre”. Em março, alguns dias depois de sua chegada, escreve para Émile
Bernard:
“a região me parece bonita como o Japão, devido à limpidez da atmosfera
e aos alegres efeitos de cores.
Nas águas, formam-se manchas de um belo verde esmeralda e de um rico
azul nas paisagens, como nos tecidos pintados. O crepúsculo, cor de
laranja-pálido, faz com que a terra pareça azul. Há dias em que o sol
apresenta um amarelo esplendoroso”.
As freqüentes referências ao Japão demonstram a influência exercida pela descoberta das estampas japonesas no Ocidente, não só em Van Gogh mas em todos os pintores da época.
Já na Bélgica, Van Gogh comprara algumas estampas japonesas feitas em tela, mas em Paris pode comprá-las por pouco dinheiro de Bing, que na sua loja, na rua Provence, tem mais de 100 mil. Os artistas não procuraram imitar esta arte exótica, mas a incorporaram a suas pesquisas pessoais. A japonaiserie, junto com outras influências contemporâneas, foi um dos elementos constituintes de uma arte nova e, para Van Gogh, serve para confirmar suas observações diretas diante da natureza.
“Todo o meu trabalho é um pouco baseado na japonaiserie. “
“A arte japonesa, em declínio na sua pátria, cria raízes nos artistas impressionistas franceses.”
“Não é pois uma espécie de religião que nos ensinam estes japoneses tão simples, que vivem na natureza como se eles próprios fossem flores? E parece-me que quando se estuda a arte japonesa fica-se muito mais alegre e feliz; ela nos obriga a voltar à natureza não obstante a nossa educação e o nosso trabalho em um mundo de convenções.”
Escreve para a irmã:
“Théo escreveu-me que deu estampas japonesas de presente para você. É por certo o modo mais prático para chegar a compreender a direção que tomou em nossos dias a pintura clara e colorida. Eu, por mim, aqui não tenho necessidade delas, pois me repito sempre que, aqui, estou no Japão. E assim não tenho mais nada a fazer senão abrir os olhos e pintar o que, diante de mim, me motiva”.
A leitura de Madame Chrysanthème de Pierre Loti impressionou-o muito. De maneira muito curiosa, quando fala disso à irmã, ele o faz em termos de pintura, citando a japonaiserie de Loti:
“Você sabe que os japoneses
instintivamente procuram os contrastes
e comem pimentões açucarados,
caramelos salgados e sorvetes fritos”.
Pinta febrilmente, em pleno sol, sempre do natural; o estudo é abandonado sempre que um campo de trigo é ceifado ou as flores de um maço que começam a murchar. Fascinado pela cor, Van Gogh fala muito sobre isso nas suas cartas.
“O que diz Pissarro é verdade: seria necessário levar ao extremo os efeitos produzidos pelas cores mediante suas harmonias ou desarmonias. É como no desenho - a cor exata e o desenho não são as metas essenciais a serem atingidas, pois, se fosse possível fixar em cor e forma o reflexo da realidade em um espelho, isto nunca seria um quadro, pois não passaria de uma fotografia.”
Respeita as leis, mas faz pesquisas, interroga-se e aconselha-se com o amigo Bernard.
“Uma questão de técnica. Você me dará sua opinião em sua próxima carta. Porei o preto e o branco em minha paleta e os usarei com audácia. Quando lembre-se que falo da simplificação de cores à maneira japonesa -, quando vejo, em um parque verde com os caminhos rosa, um senhor vestido de preto e que lê L’Intransligeant. Sobre ele e o parque, um céu cor de cobalto. Por que não pintar então a este senhor com negro osso simples e L’Intransigeant com branco puro, simples, cru? Porque o japonês faz abstrações do reflexo, espalhando as tintas planas uma vizinha à outra, enquanto traços característicos delimitam movimentos ou formas.”
E na carta seguinte para Bernard:
“Eis o que quis dizer a propósito do branco e do preto. Vejamos O semeador. O quadro está dividido em dois, uma metade é amarela, no alto, e, embaixo, ele é violeta; pois bem, a calça branca repousa a vista e distrai no exato momento em que o contraste excessivo e simultâneo de amarelo e violeta poderia cansar”.
“Em uma outra ordem de idéias, quando se cria um motivo em cores que exprime, por exemplo, um céu amarelo à tarde, o branco duro e cru de um muro branco contra o céu, a rigor representa-se, e isto é estranho, com o branco cru atenuado por um tom neutro, pois o próprio céu, muitas vezes, o colore de um delicioso tom lilás. E ainda nesta paisagem tão ingênua que se deveria representar uma cabana inteiramente branca de cal (inclusive o teto), colocada em um terreno evidentemente laranja-forte, sendo azul o céu do sul e o Mediterrâneo, tornam o laranja tanto mais intenso quando mais violenta é a tonalidade do azul.
A nota negra da porta, dos vidros, da pequena cruz sobre o teto faz com que haja um contraste simultâneo de branco e preto, tão agradável, quanto o obtido pelo azul com o laranja... Basta que o branco e o preto sejam cores também, pois que em muitos casos eles podem ser assim considerados, já que o seu contraste simultâneo é tão agudo quanto, por exemplo, o do verde com o vermelho.”
“O que eu queria conhecer era o efeito de um azul mais intenso no céu. Fromentin e Jérôme vêem o solo do sul incolor, e muita gente também o vê assim. Mas, meu Deus, se você pegar areia enxuta na mão e a observar de perto, ela também será incolor, assim como a água e o ar se vistos da mesma forma. Não há azul sem amarelo e sem laranja-forte, e quando se usa o azul, usa-se também o amarelo e o laranja-escuro, não lhe parece?”
As descrições dos quadros que está pintando, das paisagens, das cenas e dos personagens que vê atingem, às vezes, uma assombrosa riqueza de expressão:
“Havia moças em Saintes-Maries que lembravam Cimabue e Giotto: elas eram esguias, retas, um pouco tristes e místicas. Na praia plana e arenosa, pequenas embarcações verdes, vermelhas, azuis, tão graciosas na sua forma e cor que nos fazem pensar em flores”.
“Muitas vezes, me parece que a noite ainda é mais rica em cores que o dia, com violetas, azuis e verdes mais intensos. Se você prestar atenção verá que certas estrelas são cor de limão, outras têm fulgurações rosa, verdes, azuis, miosótis... E sem ir mais além, é evidente que para pintar um céu estrelado não é de maneira alguma suficiente colocar pontos brancos sobre um negro azulado... Eis uma mostra de noite sem negro, só de um belo azul, violeta e verde.”
“Quanto mais me torno feio,
velho, mau, doente, pobre, mais quero me vingar
usando cores brilhantes, esplendorosas...
E organizar as cores em um quadro para fazê-las vibrar valorizadas pelas contraposições é mais ou menos como dispor jóias e inventar trajes.”
“Um motivo em azul e laranja: flores-de-lis com crisântemos brancos e algumas calêndulas; um outro em lilás e amarelo: girassóis e rosas amarelas; em roxo e verde: papoulas ou gerânios vermelhos entre folhas de um verde firme; estas são as bases, que depois podem ser subdivididas, aperfeiçoadas e completadas, mas isto é suficiente para fazê-lo ver, mesmo sem quadro, que existem cores que se colocam em evidência, que se conjugam, que se completam, como se completam o homem e a mulher.”
“A cor aqui é verdadeiramente bela. Quando o verde é fresco, é rico como raramente aparece no Norte, um verde que proporciona a paz. Quando está avermelhado, coberto de pó, não se torna feio por isso, mas a paisagem assume, então, todos os matizes dos tons dourados:
ouro-verde, ouro-amarelo, ouro-rosa, ouro cor de bronze, ouro-acobreado e
também amarelo-limão e amarelo-descolorido, o amarelo, por exemplo, de um monte de trigo debulhado. Quanto ao azul, vai do mais profundo, na água, ao azul do miosótis, ao cobalto, sobretudo ao azul-claro, transparente, ao azul-verde, ao azul-violeta. Isto, naturalmente, exige o laranja-forte: um rosto queimado pelo sol torna-se alaranjado. E depois, com muito amarelo, o violeta começa, de repente, a cantar.”
A propósito do seu Café à noite:
“Nesta tela existem cinco ou seis vermelhos diferentes, do
vermelho-sangue ao rosa-suave, que se contrapõem aos ver-
des-pálidos ou escuros”.
“Passei três noites acordado pintando e depois dormindo
durante o dia. Por tudo, uma luta e um contraste dos verdes
e dos vermelhos mais diversos. Procurei exprimir com o ver-
melho e o verde as terríveis paixões humanas.”
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