domingo, 22 de maio de 2011

ARTE: PROFANA E SAGRADO - Rafael Lima



Yara Mitsuishi
 
Voltando do Fundão no antigo passat do meu avô, dou carona à uma albina da Belas Artes. Meu humor não era dos melhores - tinha saído de uma prova daquelas - e achei que uma companhia qualquer poderia salvar o dia. Contei minha desgraça e, por solidariedade, contou a dela: aula de escultura em gesso, o molde seeeempre vaza, aquela su-jei-ra-da toda que espera o professor sair da sala para acontecer. Já estava me sentindo bem com os comentários - nada como a desgraça alheia para relativizar a nossa! - quando ela me coloca no dedo um anel de ouro com a seguinte pérola:

- Gesso é uma porcaria, escorre, cai na roupa, a escultura perde a forma e resseca... Olha, ainda bem que era abstrata.

"Arte é aquilo que as pessoas chamam de arte" 
(E. Haiama)
Mercado Modelo, Salvador, Bahia, 1997. A título de presente, procuro um quadro com cena típica da assim chamada cultura afro-brasileira: berimbau, capoeira, acarajé. Tudo que há é muito repetitivo, tosco, apressado - e, o que é pior, sem aquele jeitão naif para justificar. Enfim, bato o olho em algo que me agrada: duas baianas estilizadas, esquema bem feira hippie de Ipanema: composição simples, mas com algum movimento, graça e alegre jogo de cores. Porém, as dimensões da tela ultrapassavam a acanhada paredinha da varanda. O vendedor tinha se mostrado atencioso e prontificou-se rápido demais a arrumar algo menor, naquela linha. Mexe daqui, mexe dali, lá vem ele com um quadro exatamente igual ao que vi, mesmas cores, composição, motivo, em escala menor...

"Arte é tudo que o homem faz 
que não está relacionado com sua sobrevivência" 
(Scott McCloud)
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. A extensa mostra Salvador Dali bate recordes de visitação. Mas falta prática de exposição a um público desacostumado a ir a museu, e mais ainda a como se comportar lá dentro. A maioria não tem saco para ler o texto introdutório pintado na parede nem para acompanhar os slides - que iriam dar toques sobre muito do que se vai ver dali para frente (perdão pelo trocadilho infame) - e entra de uma vez. 

Os primeiros quadros são diminutos, preparando o espectador para a amplitude de esculturas, quadros, talheres, colares, pulseiras, figurinos, fotografias que se seguirão. Intimidado pela pompa, o visitante dá aquela meia trava diante do quadro e vai até a etiqueta que o identifica, apenas para ler um título que raramente tem a ver com as ilustrações do quadro, o que só piora seu desconforto. Olha para sua acompanhante, que retribui com um olhar de "eu também não entendi", e seguem adiante, repetindo este ritual peça por peça. Até que se deparam com uma, metálica, no chão, jeito de abandonada e... sem etiqueta de identificação - o que os deixa particularmente aborrecidos com a desatenção da curadoria, motivando, talvez, uma reclamação remota no barzinho no final de semana seguinte ("Muuuuito desorganizada"), sem que eles soubessem que se tratava do desumidificador de ar.
Substitua Dali por Picasso 
e MNBA por Centro Cultural do Banco do Brasil 
e a história se repete literalmente.
"A Arte não é um aspecto da vida;
é o todo da vida visto debaixo de um aspecto" 
(Almada Negreiros)
Fim da década de 40: Ferreira Gullar veste o paletó às avessas, calça seus tamancos maranhenses, arranca o cabo da panela que estava bambo e está pronto para ir ao evento de Arte Moderna. De havaianas e com o paletó também ao avesso, acompanha-lhe José Carlos Oliveira, então aspirante a escritor, que dividia um quarto com ele. Como se dizia antigamente, ambos causam espécie ao chegar lá. O que eles fazem ficaria conhecido como happening, anos depois. Mas naqueles dias eles quase tiveram que fugir correndo da polícia.
"A arte é essencialmente inútil, como a vida." (Oscar Wilde)
 
Pollock, filme de Ed Harris. Depois de tomar umas e outras em reunião na casa de campo do pintor, um crítico, Clem, faz um comentário qualquer depreciativo sobre certo aspecto de um quadro. Jackson Pollock sai da sala sem se agüentar dentro das calças, vai até o celeiro onde guardava as telas e vem com ela debaixo do braço. A expressão é de ira, ele já tinha tomado algumas e estava pronto para destruir tudo. Coloca o quadro em local visível por Clem e pergunta:

- Era dessa aqui que você estava falando?
- Sim, exatamente essa.
Pollock arma-se do tubo de tinta, 
a mão tensa, pronta para borra tudo...
mas fraqueja. 
O crítico dispara:

- Eu sabia. 
A arte é sagrada para você. 
Você não se permitiria violar um de seus quadros.
Rio de Janeiro, 28/8/2001
Fonte:
Digestivo Cultural
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=187&titulo=Profana_e_Sagrada

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